sábado, 26 de setembro de 2009

O MEMORIAL FRANCISCO PEREIRA DA SILVA AMEAÇA DECOLAR...


Pelo calibre das personalidades que tomaram a si o dever de batalhar pela criação do Memorial Francisco Pereira da Silva, caso dos ilustres Dr. Domingos José e do brilhante presidente da Academia Campomaiorense de Artes e Letras (ACALE), João Alves Filho, a coisa agora pode tomar um rumo diferente do que andava meio titubeante. A propósito, escrevi artigo para o jornal Destak que deve sair aqui esta semana, provocando o meu amigo dileto João Alves Filho e chamando-o à responsabilidade com relação ao Memorial. Fui até meio rude e grosseiro com ele, mas isso fica por conta da amizade de décadas que cultivo com ele. Ontem participei de solenidade acontecida na Unidade Educacional Monsenhor Mateus, onde fiz breve palestra sobre Francisco Pereira da Silva e João Alves e Dr. Domingos José estavam lá e me garantiram o empenho em torno da criação do Memorial (que já existe na forma de Lei desde 2005) Se for formada uma comissão de alto nível para ir à Presidente da Fundação Cultural da Secretaria de Educação e Cultura, do governo do Estado do Piauí, a coisa anda... A arte que ilustra a matéria, é do Netto.

E PARA CONHECER MAIS FRANCISCO PEREIRA DA SILVA...

FRANCISCO PEREIRA DA SILVA, VIDA E OBRA

Aci Campelo e F. M. Moura

UM SONHO DE MAGIA E BELEZA

Um dos últimos sonhos do dramaturgo piauiense Francisco Pereira da Silva foi o de criar em Teresina um Teatro Popular Navegante, um teatro aquático “um espaço sobre as águas”, como ele dizia, ou seja, um espaço teatral fincado sobre dois botes, unidos por um tablado, que sairia pelas margens do Rio Poty, por ter a vantagem de ser um rio de águas tranqüilas. E, o rio estando a leste, o sol das cinco horas da tarde, horário dos espetáculos, iria incidir nas suas águas, iluminando palco e atores. No Teatro Navegante seriam encenadas peças brasileiras e estrangeiras, autores nordestinos em especial, e ainda, shows de música eruditos e populares e espetáculos folclóricos, expressão da gente piauiense. O Projeto Rio Poty – Um Teatro Popular Navegante, chegou a ser escrito, mas não passou do papel. Um sonho de magia e beleza. ENSAIO BIOGRÁFICO Francisco Pereira da Silva nasceu no dia 11 de agosto de 1918, na cidade de Campo Maior, no Estado do Piauí. Era filho de Isaías Pereira e Antônia Marques, e tinha uma irmã, Nazaré de Odylo Costa, filho, honrada viúva de Odylo Costa, filho, grande poeta e escritor brasileiro. Quando o menino Chico veio ao mundo, a cidade de Campo Maior não passava de uma paisagem de imensos carnaubais, tendo época em que as chuvas transformavam os vastos campos numa abundância de águas e noites de frio. Ele passou a infância e parte da juventude em sua cidade, e aprendeu a conviver com as mudanças do tempo, uma alternância entre estiagem e inverno, quando aprendia e guardava na lembrança uma infinidade de histórias de vaqueiros, homens simples e rudes, principal esteio em que se apoiava uma leva de pais de famílias de sua nunca esquecida Campo Maior. As lembranças e fatos vividos por ele iriam aparecer tempos depois nos enredos de suas peças, com uma pujança e um frescor inesquecíveis. Para continuar os estudos, mudou-se para Teresina, onde fez o ginásio no Liceu Piauiense. Depois viajou para São Luís do Maranhão, onde iniciou os estudos clássicos. No começo da década de quarenta, Francisco Pereira toma o rumo do Rio de Janeiro, terminando o Clássico no Colégio Pedro II. Prosseguindo em sua formação, ele fez até o terceiro ano da Faculdade Nacional de Direito. No Rio de Janeiro, morou com dois conterrâneos de grande expressão artística nacional, o pintor, figurinista e cenógrafo Sansão Castelo Branco e Anísio Medeiros, desenhista, figurinista e cenógrafo, premiado em teatro nacionalmente com os prêmios Molière e Mambembe, futuro cenógrafo de peças de Francisco Pereira da Silva e um de seus maiores amigos. Quando deixou a Faculdade Nacional de Direito, determinado a permanecer no Rio de Janeiro, Francisco Pereira fez o curso de Biblioteconomia e foi nomeado para o cargo de bibliotecário na Biblioteca Nacional, o ano era o de 1944. Em seu trabalho, e com a grande disciplina que lhe era peculiar, passou a se alimentar de todos os clássicos da literatura universal. Daí foi um passo para enveredar pela literatura fazendo contos que foram publicados em revistas e suplementos literários de jornais do sul do país. Neste sentido, fez parte da uma antologia de contos organizada pelo escritor Graciliano Ramos. No Piauí, tem contos seus publicados pelo poeta e crítico literário Francisco Miguel de Moura, também numa antologia denominada “Piauí: Terra, História e Literatura”. A descoberta e a paixão pelo teatro veio com a leitura da obra de Frederico Garcia Lorca, o grande poeta e dramaturgo espanhol, vítima da brutal violência franquista. De Garcia Lorca ele admirava o intenso lirismo e a poesia inspirada em base popular. O escritor espanhol iria influenciá-lo no seu teatro de cunho popular e social. A primeira peça teatral de Francisco Pereira da Silva foi “Viagem”, escrita em 1946, ainda inédita como encenação. O texto foi inspirado em suas leituras de Lorca. Em 1948, Francisco Pereira da Silva escreveu sua grande peça de teatro “Lázaro”, baseada em “Electra”, do grego Sófocles, transposta para o Nordeste brasileiro. Naquele período, dominava a cena do teatro amador brasileiro a força e a perseverança do grande Paschoal Carlos Magno, o criador do Teatro do Estudante do Brasil. Paschoal fez de sua casa, no bairro de Santa Teresa, na rua Hermenegildo de Barros, o Teatro Duse. Foi desse teatrinho que saíram verdadeiros talentos da dramaturgia brasileira, como Ariano Suassuna, Luís Marinho e tantos outros. Francisco Pereira submeteu-se ao concurso de textos promovido por Paschoal, que fazia “de um tudo”, desde a inscrição do candidato à escolha do premiado, e ganhou o prêmio de autor revelação daquele ano com sua peça “Lázaro”, dado pelo Círculo Independente de Autores Teatrais. Paschoal Carlos Magno tratou de fazer a publicidade do novo talento descoberto por ele, na sua coluna sobre teatro no Jornal “Correio da Manhã”, do Rio de Janeiro. A peça teve estréia no ano de 1952, no próprio Teatro Duce.

PEÇAS ENCENADAS

Tendo estreado no mundo do teatro, e já fortalecido com um prêmio, Francisco Pereira da Silva passou a colaborar na imprensa com uma coluna de crítica teatral no Jornal “Diário Carioca”, convivendo com grandes nomes da imprensa da época. Prosseguindo no seu ofício de dramaturgo, escreveu os textos “Caso do Chapéu”, adaptado do conto de Machado de Assis, “Capítulo dos Chapéus” e “Memórias de Um Sargento de Milícias”, do romance do mesmo nome de Manuel Antônio de Almeida. Ele enfrentou o palco novamente em março de 1960, quando estreou a peça “Romance do Vilela”, no Teatro da Maison de France, pelo Studio 53, dirigida por Carlos Murtinho. A peça foi baseada na lenda sertaneja “Cantiga do Vilela”, e a ação se passava numa cidade do Nordeste. Mas foi com “Cristo Proclamado”, escrita em 1958, que ele praticamente iniciou sua obra autoral, para o que tinha se preparado com toda paciência e humildade. A peça estreou no Teatro Copacabana, pelo Teatro dos Sete - Companhia Fernanda Montenegro, em agosto de 1960, com direção e cenário do genial homem de teatro Gianni Rato, tendo no elenco, entre outros atores, Ítalo Rossi, José Wilker, Fernanda Montenegro, Sérgio Brito, Francisco Cuoco, Zilka Salaberry e Maria Gladys, todos artistas primorosos, alguns obviamente em início de carreira. A estréia foi feita com o teatro lotado de pessoas da mais alta sociedade carioca. “Cristo Proclamado” conta as proezas do personagem Demóstenes de Albuquerque, por alcunha Pintassilgo, um artista de circo que voltou para sua terra natal, Guaxinim, e passou a montar uma via sacra na cidade todos os anos. O texto aproveita para discutir a seca nordestina, a miséria de retirantes se amontoando na cidade à procura de comida e a politicalha do interior. O cristo proclamado da história é o personagem Morais, assassinado quando fazia o papel de Cristo na via sacra do Pintassilgo, numa trama dos coronéis do lugar. Se o texto trazia uma expressão própria, onde o autor começou a transfigurar os sofrimentos do povo de sua região e onde os conflitos familiares se mesclavam a elementos da comédia doméstica com preocupação de cunho social, foi exatamente essa temática que não agradou ao público carioca, que certamente não estava decidido nem acostumado ao debate de tanto sofrimento, nem muito menos de gente relegado ao deus-dará. Portanto, a peça não passou de duas semanas em cartaz. No entanto, deixou uma certeza e uma marca cristalina: a de que Francisco Pereira da Silva tinha caído nas graças das crítica. Seguiram-se, na carreira do dramaturgo, as seguintes peças: “O Desejado”; “Chapéu-de-Sebo” e “O Vaso Suspirado”, de 1963. “O Desejado” o autor dedicou à escritora Raquel de Queiroz, que considerou numa apresentação feita sobre o texto, juntamente com “Romance do Vilela”, pertencer ao que ela chamou de “o ciclo do boi”. Isto por que as peças tinham influências da cultura popular nordestina, principalmente em “O Desejado”, quando ele usou colagem do romanceiro de cordel, como a “A História do Boi Misterioso”, de Leandro Gomes de Barros, e “O Boi Mandingueiro”, de Bernardo da Silva. Em “O Desejado”, o autor coloca como dedicatória uma letra muito conhecida dos piauienses: “O meu boi morreu / Que será de mim / Vamos buscar outro maninha...” A farsa “O Vaso Suspirado” é tida pela crítica teatral como uma pequena obra prima. A peça conta a história de um bispo que foi designado para servir numa cidadezinha do interior. Então, as beatas que lhe serviam ficam brigando para ver quem conseguia ficar com a melhor herança do senhor bispo. Brigam tanto que até disputam o penico de louça do bispo, terminando por quebrarem o objeto. As beatas ficam horrorizadas com o fato. O venerando bispo pega os pedaços do penico e tenta o milagre de emendá-lo, e o milagre se torna realidade. A peça teve uma montagem de alto nível feita pelo Grupo Harém de Teatro, do Piauí, dirigida por Arimatan Martins, apresentada no Teatro 4 de Setembro, onde estreou em 1997. Da fase mais forte relacionada à temática nordestina, o texto mais importante, senão o mais famoso de toda a dramaturgia de Francisco Pereira da Silva, é a peça “Chapéu-de-Sebo”. O próprio autor colocou que o enredo da peça foi inspirado em um caso verídico acontecido na década de 20 na cidade de Campo Maior, sua terra natal. A história é simples: um jovem vaqueiro mata sua mulher que teria sido seduzida por coronéis da região e depois o seu crime é usado politicamente de todas as formas. É a peça com o maior número montagens do autor e a de maior sucesso de sua carreira. Seu valor ultrapassou as fronteiras do país, sendo traduzida para o alemão numa antologia de cinco autores do moderno teatro brasileiro. Montada por companhia de teatro alemão, foi representada em Berlim, na Tchecoslováquia e Finlândia, permanecendo em cartaz por muito tempo. “Chapéu-de-Sebo” virou filme nacional, no ano de 1983, com o título de “Amor e Traição”, dirigido pelo cineasta Pedro Camargo, com roteiro do próprio Francisco Pereira da Silva. No elenco estavam estrelas do cinema brasileiro, como Jofre Soares, Nelson Xavier, Ítala Nandi e Cláudia Ohana. No Piauí, a peça teve uma montagem do Grupo TEU, da Universidade Federal do Piauí, dirigida por Chico Filho, no ano de 1999. Deram prosseguimento à obra de Francisco Pereira da Silva as peças “Uma Carga de Laranja”; “A Nova Helena”; “Chão dos Penitentes”; “Raimunda, Raimunda”; “Reino do Mar Sem Fim” e “A Caça e o Caçador”, todas elas produzidas e apresentadas por diversos grupos ou companhias de teatro nacionais. “Chão dos Penitentes” foi escrita em 1964 e levada à cena pelo Teatro Jovem, do Rio de Janeiro, em 1965, com direção de Kleber Santos, cenários e figurinos de Anísio Medeiros, tendo no elenco nomes, como Oswaldo Louzada, Vanda Lacerda, Thelma Reston e José Wilker. A peça narra a história de Padre Cícero Romão Batista, usando o cancioneiro popular do Nordeste, com trechos de cordel dos autores Cego Aderaldo, José Bernardo da Silva, João Mendes de Oliveira e João José da Silva. “Chão dos Penitentes” é a terra comandada por um beato chamado José Lourenço, apoiado pelo Padre Cícero, onde os penitentes e o próprio beato terminam sendo mortos por forças públicas policiais. A tetralogia “Raimunda, Raimunda”, escrita em 1972, e oferecida à atriz Fernanda Montenegro, foi levada à cena no mesmo ano no Teatro Gláucio Gil, no Rio de Janeiro, pelo Grupo Teatro Vivo, com direção de Paulo Afonso Grisolli; cenários e figurinos de Hélio Eichbauer, tendo no elenco, entre outros, Rubens de Falco, Maria Fernanda, Hector Grillo, Paulo Padilha e Hélio Ary. “Raimunda, Raimunda” é composta dos seguintes textos: “Raimunda Jovita na Roleta da Vida ou Quis o Destino: De Pucella e Ninon!”; “O Trágico Destino de Duas Raimundas ou Os Dois Amores de Lampião Antes de Maria Bonita e Só Agora Revelados”; “Raimunda Pinto, Sim Senhor” e “Ramanda e Rudá”. Todos os episódios da peça, ainda que tenham um fio condutor, podem ser montados separadamente sem que haja nenhum prejuízo à dramaturgia. “Raimunda, Raimunda” sedimentou o gosto e o prazer da crítica pela obra de Francisco Pereira da Silva, não só pelo apuro técnico na carpintaria teatral mas também pelo uso de uma linguagem ágil, de fino humor e densidade dramática. Dois episódios da peça dão a dimensão do talento do autor –“Raimunda Jovita na Roleta da Vida” e “Raimunda Pinto, Sim Senhor!”. No primeiro, ele conta a trajetória de Antônia Alves Feitosa, cognominada de Jovita, nascida em Brejo Seco, Inhamuns, no Ceará, que depois da morte da mãe, residiu em Jaicós, no Piauí. Jovita Feitosa, ao saber que estavam constituindo batalhões de voluntários da pátria para a guerra do Paraguai, se veste de vaqueiro e atravessa a pé mais de setenta léguas, chegando a Teresina em julho de 1863, para se alistar como soldado. O Presidente da Província lhe dá a divisa de segundo sargento do 2º Corpo Piauiense de Voluntários da Pátria. Em agosto daquele ano ela embarca com o batalhão para o Rio de Janeiro e, como heroína, foi festejada em São Luís, na Paraíba e em Recife. Mas Jovita não conseguiu ir para a guerra, e terminou se suicidando. Em primeiro lugar, por que foi impedida de ir ao Paraguai e, em segundo, por que seu amante, o engenheiro inglês Guilherme Noot, abandonou Jovita e regressou para a Inglaterra.

OBRAS PUBLICADAS E INÉDITAS

O autor tem as seguintes peças publicadas pela Editora Agir, dentro da coleção “Teatro Moderno”: § “Chapéu-de-Sebo”, prefácio de Francisco de Assis Barbosa; § “Cristo Proclamado” e “O Chão dos Penitentes”, com prefácio de Francisco de Assis Barbosa; e, § O Desejado” e “Romance do Vilela”, com prefácio de Raquel de Queiroz. Fora da coleção, “Reino do Mar Sem Fim” foi publicada como encarte da revista “Cirandinha”, nº 3, editada por Francisco Miguel de Moura, em setembro de 1978. Para completar sua obra, o autor deixou inéditas as peças “Graça e Desgraça na Casa do Engole Cobra”, “Hans Staden no País da Antropologia” e “Amor por Amor que é Liberdade”. Escreveu também um romance ao qual deu o título de “Revocata” e uma coleção de contos denominada “O Gregório e Dona Mariana”, que ficaram sem publicação.

TEXTOS

A história de Raimunda Jovita, magistralmente transposta para o palco por Francisco Pereira da Silva, termina num final apoteótico em ritmo de melodrama, no qual ele chamou de “escamotear a sagrada história”, porque Jovita é quem termina cravando um punhal no peito do poeta Rangel, quando este descobre que ela iria cometer suicídio. A cena é admirável:

RAIMUNDA – (Envolvendo-se no lençol, mas mantendo ainda o punhal na mão, a apontar-lhe o coração) Não adianta, Rangel, não acredito. Eu sei, Rangel, que você é festejado literato. Mas eu não gosto de leros. Prefiro a cova rasa a leros, Rangel. Sacou? E pronto, fim de papo.

RANGEL – Que pureza! A gentil corsa dos ínvios sertões de minha terra! Que desprendimento comovente: “a cova rasa e pronto!”. Não, gentil Jovita, não! Um melodrama nunca é demais! Enfeitemos! “Oh, não foi a pátria, eu me retrato / a pátria compreendeu quanto valia / Jovita de Inhamuns glória primeira / que de tudo apesar resplandecia”.

RAIMUNDA – Pô, corta esta, poeta. Tá me grilando a cuca. Te arranca! (Raimunda, enrolada no lençol, cai no chão. Rangel, com o pé em cima do corpo de Raimunda, retira do bolso um imenso lenço preto.)

RANGEL – “Brasil, o teu cocal cinge de crepe, mais um herói morreu – morreu Jovita!”

RAIMUNDA – (Levantando-se) Rangel, meu bem, se você quer berrar, berre ... Vem cá... Sonhemos. Você, um paraguaio, e eu, a guerreira de Inhamuns. Eu, cruzando o fogo inimigo, salto no teu pescoço, (Salta no pescoço de Rangel e lhe crava o punhal) e te dou uma estocada e bumba!

RANGEL – Jovita, mas isto não é absolutamente histórico! Assim, seria escamotear a sagrada história. Mas, se te apetece a ficção, representemos. Veja, estou cambaleante! (Cai).

RAIMUNDA – Pique! Uma bela bolha de sabão doirada! Pique! Uma vingança aos necrológios. Brasil, o teu cocal cinge de crepe, mais um herói morreu – morreu Rangel! “Raimunda Pinto, Sim Senhor!” é um épico sertanejo, em que o autor narra a história de uma negra de lábios leporinos, pobre e miserável, nascida no Ceará. Ela se descobre rejeitada por todos por causa do grave defeito, e resolve partir de sua terra natal para o Rio de Janeiro, onde pretende estudar para enfermeira na Escola Ana Neri, e naturalmente, fazer plástica nos lábios. Num clima de farsa tragicômica, Raimunda Pinto perambula pelas estradas do Brasil até chegar ao seu destino. Passa no concurso da Escola Ana Neri mas é reprovada nos exames de saúde. Então, resolve falar com o presidente Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, para denunciar tamanha injustiça. O presidente está atarefado, pois o país vive o clima pleno da 2ª guerra mundial, mas Raimunda não desiste e se planta em frente ao Palácio. O diálogo de Raimunda com Gregório Fortunato, guarda-costas de Getúlio, tentando uma audiência com o presidente, é encantador:

RAIMUNDA – Pois daqui não saio nem que você queira, viu? (Chora) Desgraçados... Passei no vestibular de enfermeira e quando acaba fui cortada no exame médico. Me vali de tudo que foi santo e do meu São Francisco das Chagas de Canindé! Uma injustiça! E sabe o que os descarados disseram? Que eu voltasse pro meu Ceará, que fosse fazer bordado e renda. Tá vendo? Se conselho fosse bom ninguém andava dando. E é essa injustiça que eu quero denunciar a Getúlio.

GREGÓRIO – Pois não vai poder ser.

RAIMUNDA – (Berreiro) Ai, ai!... GREGÓRIO – Cala o berreiro, ô china desesperada!

RAIMUNDA – Me leve, seu Gregório, me leve. Ai, ai, ai...

GREGÓRIO – Desgramuda. E, inda por cima, fanhosa. Diabo de choro mais feio. Cala a boca!

RAIMUNDA – Não calo, não calo, não calo! (Gregório segura Raimunda pelo braço. Esta grita mais alto. Entra Getúlio)

GETÚLIO – O que é isto, gente?

GREGÓRIO – Presidente, atenda esta cearense, porque ou ela acaba me matando ou em acabo matando ela. Faz um mês que a china bate aqui todo dia, me azucrinando os ouvidos.

GETÚLIO – (Com doçura, alisando os cabelos de Raimunda) Meu bem, você está matriculada. Mas, antes, dê uma passada no Hospital dos Servidores, que é para acabar com este defeitinho. Tá? Raimunda Pinto se opera dos lábios leporinos, vira madame e termina viajando para os Estados Unidos com um senador americano, de onde viaja para o Japão e é testemunha da tragédia de Hiroshima. É um texto vigoroso mas cheio de sutilezas, e com grandes possibilidades cênicas.

CRÍTICA Na peça “Reino do Mar Sem Fim”, Francisco Pereira da Silva foge um pouco à sua temática habitual e enfoca uma história inspirada em um fato real, um teatro-reportagem. Ele conta a história de um barqueiro, pescador da Bahia, que nunca trazia para casa o sustento da família. O pescador termina se envolvendo com o candomblé e fica obcecado por Iemanjá. Com a finalidade de trazer fartura para casa, leva sua filha adolescente para o alto mar e entrega-a a Iemanjá, jogando a menina em águas densas. Esse texto foi produzido e dirigido por Tarciso Prado, em Teresina, dentro da “II Mostra de Teatro Amador do Piauí”, no ano de 1978. Com “Reino do Mar Sem Fim”, o diretor e ator piauiense, amigo particular de Francisco Pereira, iniciou a tarefa de mostrar a obra do dramaturgo até então desconhecida no Estado do Piauí, sua terra-berço. A amizade de Tarciso Prado com Chico Pereira da Silva possibilitou sua vinda a Teresina e a discussão de muitos projetos e propostas para o teatro piauiense, infelizmente não concretizados. “A Caça e o Caçador” foi uma peça premiada pelo antigo STN – Serviço Nacional de Teatro, em concurso de dramaturgia. O texto trazia um novo enfoque à escrita do autor, diferente de outros temas discutidos. Escrita em dois atos, o primeiro baseado no conto “A Faca e o Rio”, de Odylo Costa, filho, a história tratava de um crime passional onde pescadores, ambulantes, comerciantes e pessoas ricas se envolvem numa trama de traição e morte vivida por um casal. A peça permaneceu inédita por alguns anos, até ter duas montagens pela Comédia Cearense. A primeira, no ano de 1977, quando foi inaugurado o Teatro de Arena, da Credimus, e a segunda, na inauguração do Teatro Móvel, as duas em Fortaleza, Ceará, ambas dirigidas por Haroldo Serra, tendo no elenco atores de renome, naquele Estado, como Hiramisa Serra, B. de Paiva, Ricardo Guilherme, Lourinha Falcão e Walden Luiz. Francisco Pereira da Silva foi um autor de teatro amado e festejado pela crítica, mas distante do público, que não soube acolher suas peças com o mesmo entusiasmo. Tratando quase sempre de temas referentes à região Nordeste, quando não à sua própria terra, ainda que tivessem elementos de alcance universal, suas peças montadas não atingiram o gosto dos espectadores à época das montagens. Esse divórcio entre o dramaturgo e o público talvez esteja exatamente na sua dramaturgia, escrita impecavelmente na hora certa, mas dirigida a um público errado: a sociedade carioca, hostil ao universo sofrido da região Nordeste, onde o autor buscou sua inspiração. Francisco Pereira da Silva deixou de escrever muito cedo, cada vez mais se voltando para si mesmo no cumprimento de seus afazeres como funcionário público, até aposentar-se. A coluna sobre teatro que ele fazia no jornal “Diário Carioca" foi passada para Paulo Francis, indicado diretamente por ele, para substituí-lo. Esse gesto deixaria uma profunda gratidão do grande jornalista brasileiro para com Chico Pereira da Silva. Sabendo, como poucos, suportar as adversidades de seu ofício e nunca reclamando de injustiças cometidas contra ele, viveu numa grandeza inigualável. Francisco Pereira da Silva morreu modestamente, esquecido da maioria de seus amigos e da gente de sua terra, no seu apartamento na Av. Ataulfo de Paiva, no Leblon, Rio de Janeiro, no dia 8 de abril de 1985, sendo enterrado no Cemitério de São Francisco Xavier. Não há dúvida de que a obra de Francisco Pereira da Silva precisa ser redescoberta, levada à cena e debatida no Brasil. Grande parte de seus textos estão inéditos, e só com o conhecimento, o estudo de sua obra, vai-se descobrir e se entender melhor porque um autor que tanto dignificou a dramaturgia brasileira não atingiu o grande público. O feito de ter trazido Francisco Pereira da Silva ao conhecimento do povo piauiense foi de Tarciso Prado, iniciado no ano de 1978, e sedimentado em 1985, quando o autor foi homenageado pelo amigo com a realização da “Semana Chico Pereira”. Naquela “Semana”, com a realização de seminários, palestras e cursos, houve a montagem de dois episódios de “Raimunda, Raimunda” – “Raimunda Jovita na Roleta da Vida ou O Destino Quis Assim: De Pucella a Ninon”, montada pela Companhia de Drama e Comédias do Piauí, com direção de José da Providência, e “O Trágico Destino de Duas Raimundas ou Os Dois Amores de Lampião Antes de Maria Bonita e Só Agora Revelação”, montada pelo Grupo Harém de Teatro, com direção de Arimatan Martins. Na realidade, foi com esta última peça que nasceu o Grupo Harém de Teatro. A “Semana Chico Pereira” teve grande repercussão e possibilitou o resgate da obra dele para os piauienses, pois foi a partir desse resgate que o Grupo Harém de Teatro montou mais dois espetáculos do autor, sendo “Raimunda Pinto, Sim Senhor!” e “O Vaso Suspirado”. Duas montagens piauienses que mostraram em festivais realizados pelo Brasil a grandeza da moderna dramaturgia de Pereira da Silva. Sobre Francisco Pereira da Silva e sua obra manifestaram-se as seguintes personalidades da arte e da cultura brasileira: O jornalista e escritor Paulo Francis: “É um dos muitos talentos desperdiçados no Brasil, pela falta de um meio ambiente, da irrigação cultural que permitiria que crescesse. À parte isso, é um homem educadíssimo, gentil, de sensibilidade à flor da pele, ou seja, “inadequado” à brutalidade na luta pela subida ao pau de sebo. Ele, outro amigo, Anísio Medeiros, pintor, cenógrafo de talento, personalidade forte e crítica, e eu, passamos muitas horas de papos, e então aprendi muito dos dois. Como também me ensinaram (na medida do possível) a arte brasileira da convivência. Devo-lhe mais do que imaginam e do que não me dei conta na ocasião”. A escritora Raquel de Queiroz: “Nas peças do piauiense tem tudo que nos peça o coração. Uma força de legitimidade, ouro de lei na sua maior pureza... Um senso de poesia que é épico e lírico. E aquele bom gosto infalível. E no remate de tudo, nem trincando ele se afasta das exigências mais severas do teatro. O texto que dá é mesmo para espetáculo, matéria de declamação e cantoria, que só se realiza plenamente no palco, tal como precisa ser a literatura dramática, propriamente dita e entendida.” O ex-ministro Eduardo Portela, escritor e acadêmico: “ A arte vertical de Francisco Pereira da Silva não se contentou em promover uma simples restauração. Foi além: deixou fruir livremente o viver descontraído de um tempo contraditório. Daí a sua atualidade. Porque Francisco Pereira da Silva soube armar um perfeito contraponto estilístico, bifurcado entre o idioma solene de uma época e a palavra generosa dos nossos dias”. Tarciso Prado, ator e diretor de teatro: “Francisco Pereira da Silva, um mestre da moderna dramaturgia brasileira, tem sido vítima de críticos mordazes que teimam em apontá-lo como regionalista, com deliberada intenção de macular sua obra. Essa tese, diante da evidente superioridade formal de Chico Pereira da Silva, é inócua. Quem já estudou, criteriosamente, os trabalhos desse piauiense, há de pelo menos ter descoberto, além da exuberância literária tão própria do seu talento de escritor, uma linguagem intencional ou subjetiva que dá à sua criação uma indiscutível universalidade. Francisco de Assis Barbosa, escritor e crítico, prefaciador de peças publicadas de Chico Pereira: “São poucos, raros, os escritores que se entregam a uma trabalho de criação como fez Francisco Pereira da Silva, com ciência e consciência do que tinha a realizar pela frente. Ele se preparou para a tarefa, estudou, pesquisou, munido de paciência e humildade. E, com seu talento de escritor, decidiu-se a transfigurar em obra de arte os problemas de sua terra e os sofrimentos de seu povo, terra e povo com que se acha plenamente identificado. Sua obra é constituída com admirável coerência, perícia artesanal e singular beleza plástica”.

BIOGRAFIA DOS AUTORES:

ACI CAMPELO (Francisco Aci Gomes Campelo), dramaturgo e escritor. Natural de Lago da Pedra, Maranhão, nascido a 5 de agosto de 1955. Autor, entre outras peças, de “Soy Loco Por Ti”, “Às Margens do Jenipapo, “Auto do Corisco”, “A Menina e o Boizinho” e “Uma Estrela”. Escreveu também um ensaio histórico: “O Novo Perfil do Teatro Piauiense”.

FRANCISCO MIGUEL DE MOURA, natural de Francisco Santos, Piauí, poeta e escritor, editor da revista “Cirandinha”, escreveu mais de 20 livros entre publicados e inéditos, destacando, “Viragens”, poemas, 2001, Rio, e “Literatura do Piauí”, a sair ainda este ano.

5 comentários:

  1. Fcº Arruda - Planaltina1 de outubro de 2009 às 06:07

    A primeira atitude que deve ser tomada ligeiro bala é arrancar o nome do senador Sigefredo Pacheco do teatro. Ele era artista de outras peças que... deixa pra lá. E já é nome de cidade, rua, praça, escola, motel...
    Agora é divulgar este movimento. Zan, recomenda ao Neto do Bitorocara, ele é bom nsssas coisa também por ser um grande artista da terra, que nem o Chico Pereira, renomado teatrólogo internacional.
    Os blogs servem também para isso.
    Vão em frente.

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  2. Xico Arruda, li primeiro o teu comentário no blog bitorocara e respondi lá teu comentário. Vai lá.

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  3. "Cada um de nós constrói a sua própria história e cada ser carrega em si o dom de ser capaz, de ser feliz. (Almir Sater/Renato Teixeira)

    Fazer um memorial consiste então em um exercício de escrever a própria trajetória de vida e é o resultado de uma narrativa apartir dos fatos que nos vêm à lembrança, é aprofundar a reflexão sobre ela.

    Caro ZAN, somos dignos de ficar na memória?

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  4. A coisa do Memorial tem alguns detalhes interessantes: ninguém sabe que na cidade nascue um dos grandes dramaturgos do país. Em Parnaíba sabe-se que Assis Brasil é parnaibano. Em Oeiras, sabe-se que O.G.Rêgo de Carvalho é oeirense. É vergonhoso, pra dizer o mínimo, que a terra que produziu gente do quilate do Dr. Santana, não saiba que um filho seu que se destacou no país e no mundo, não conheça esse filho ilustre. Eu acho chocante.

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  5. Dr. Domingos José, Gilberto Alves, Luis Cadeira, João Alves Filho, eu, estamos à frente de uma comissão provisória para criar um Movimento Pró-Memorial Francisco Pereira da Silva, reunindo todas as pessoas de todos os seguimentos sociais e políticos, para transformar o Memorial em realidade. Acredito na seriedade e determinação dessas pessoas. Semana que vem se reunem para desencadear abaixo-assinados e outras ações capazes de levar adiante a idéia.

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